Agradeço
aos organizadores deste seminário a oportunidade de compartilhar com vocês um
pouco da minha experiência e algumas inquietações que cercam a vida de pessoas
que, como eu, têm uma deficiência. Estou saindo de uma gripe muito forte,
portanto, perdoem a voz e a respiração mal colocada.
Falar
de uma questão que me diz respeito é um desafio, até porque sou mais dos
bastidores do que do palco. Como tratar de tema tão delicado, evitando cair na
vitimização, no paternalismo, no heroísmo, no fetiche, no clichê, no
estereótipo? Falar com serenidade das dificuldades do dia a dia – e elas
existem! – encarar a diferença, e a repercussão dessa diferença, no meio em que
vivemos não é tarefa fácil. Mas é tarefa necessária, imprescindível nesses
tempos em que tanto se discursa pela inclusão, acessibilidade, diferença,
pluralidade.
A
sociedade reserva um determinado lugar para aqueles que fogem aos padrões de
normalidade sobre os quais o mundo está estruturado. Ninguém se espanta, por
exemplo, ao ver o negro como porteiro, operário, empregada doméstica, porque
este é o espaço que lhe cabe. Assim como ninguém se admira ao ver o homossexual
como costureiro, cabeleireiro, fazendo o gênero pitoresco, irônico, de humor
fino, ferino. O anão divertindo as pessoas, dando cambalhotas, sendo alvo de
chacota, ou como figura mágica, também não espanta. É o que lhe cabe nesse
latifúndio.
Partindo
do universo dos bufões, desde a antiguidade os anões são pessoas marcadas pelo
estigma de garantir a diversão de outros, de fazer rir, expondo-se de qualquer
maneira. Vê-los assim, os bobos da corte, é perfeitamente natural. Vê-los
responder ao discurso já dado sobre eles não espanta ninguém. Chega a ser
condição para que sejam incluídos. O espanto surge no momento em que rompem
esses espaços. É aí que a diferença grita, assume outras proporções e a
sociedade se defronta com o que não quer admitir: a rejeição, o preconceito. Já
não está mais diante do estereótipo, do ser mítico, quase distante e, sim, da
pessoa real, de carne e osso, com sentimentos, paixões, contradições e a sua
DIFERENÇA. Diferença com a qual a sociedade não sabe lidar.
É
aí que o deficiente, seja por razões físicas ou mentais, instaura a desordem
num mundo aparentemente normal, desorganiza a frágil organização da sociedade.
E as pessoas se enfrentam com a dificuldade e a necessidade de lidar com uma
realidade que não querem ver: tratar o deficiente na exata medida do seu
problema, com naturalidade. Ao ignorar ou excluir as diferenças certamente
toma-se o caminho mais fácil e mais curto para a eliminação do humano, do
caráter criativo e inusitado dos homens, que está no encontro das suas
múltiplas possibilidades e capacidades. Cabe, portanto, a nós, com a nossa
dificuldade, subverter a ordem, extrapolar os espaços e recusar os papéis já
dados, como o do bufão, o do “coitadinho”, da vítima ou o do herói. Se para a
sociedade é difícil conviver com a diferença, é fundamental fazê-la entender o
valor e as possibilidades que as diferenças trazem. Resta-nos aprender juntos,
fora dos estereótipos e dos discursos já instituídos, velhos e redutores.
Além
do acesso físico, sem dúvida fundamental, a pessoa com uma deficiência precisa
ser acolhida com a sua dificuldade, sem disfarces e pré-julgamentos; na sua
dimensão real, sem contaminações, sem transformar-se em exemplo. Só assim
construiremos relações mais humanas, definitivas para a eliminação do
preconceito. “Ver com os olhos livres”, como disse o escritor Oswald de Andrade
no Manifesto Antropofágico nos anos 20 do século 20. Se for quase impossível
adaptar a cidade às nossas necessidades, é perfeitamente viável contar com a
consciência de nossa existência. No caso dos anões, por exemplo, ser atendidos
fora dos imensos balcões dos bancos, já será um avanço.
A
mídia tem um papel fundamental neste sentido: mostrar a vida como ela é tratar
de questões que envolvem a deficiência e o preconceito com naturalidade. É
formadora de opinião, por isso tem uma enorme responsabilidade. Não pode ser
linear e burocrata em suas análises e comentários. É importante que instigue,
faça pensar, evitando o sensacionalismo, que não contribui em nada para causa
nenhuma. Precisamos de mais civilidade, mais grandeza, mais humanidade e mais
sabedoria ao tratar de temas delicados como esse.
Nós,
os anões, somos poucos e pouco lembrados, quase invisíveis para a sociedade e
os governos. Mas temos belos exemplos de reportagens sobre o nanismo. Desde os
anos 80, procuro acompanhar o assunto na mídia. Nessa época, uma matéria de
página inteira no jornal O Estado de São Paulo, com um título muito sintomático
e sensível "A solidão desta gente pequena" chamou muito a minha
atenção. Talvez aí eu tenha mergulhado definitivamente na minha condição. Há
mais de 35 anos, a reportagem era pontual e trazia vários depoimentos de anões.
Na verdade, trazia todas as questões que discutimos hoje, depois que inclusão e
acessibilidade tornaram-se palavras da moda, politicamente corretas.
Mais
recentemente, em novembro de 2009, a reportagem feita pela jornalista Fernanda
Zaffari para o Caderno Donna de Zero Hora, na qual minha irmã e eu fomos
entrevistadas, foi de uma delicadeza rara, absolutamente fora dos estereótipos.
Tratou do problema com naturalidade e nos mostrou como pessoas que vivem como
qualquer outra. A repercussão dessa matéria ainda hoje nos surpreende.
Mas
temos também péssimos exemplos de tratamento aos anões na mídia, especialmente
em programas de televisão e rádio. Por uma dessas falhas de memória que Freud
deve explicar, esqueci as datas, mas vale registrar. Comunicadores de programas
como Manhattan Connection/GNT e Pretinho Básico/Rádio Atlântida fizeram
comentários absolutamente infelizes e preconceituosos sobre os anões. Só viram
o estereótipo, sem nenhum contraponto. Pelo discurso deles, quase nazista, não
é delegado ao anão um comportamento humano. Como todo comunicador, que precisa
ser interessante e preencher um espaço sem pensar e sem questionamentos, eles
ironizaram grosseiramente a condição de vida dos anões, absolutamente presos ao
estigma, demonstrando farta ignorância sobre a diferença e a deficiência.
Para
encerrar, lembro duas frases de canções de Caetano Veloso, que podem funcionar
como uma bússola nessa nossa jornada: "Cada um sabe a dor e a delícia de
ser o que é" e "De perto ninguém é normal". Não somos nem
vítimas nem heróis. Estamos na vida como qualquer pessoa, com a nossa
dificuldade.
Lelei Teixeira - Jornalista
Seminário Mídia e Deficiência - Assembléia Legislativa do Estado do RS.
Porto Alegre, 27 de julho de 2011.
Seminário Mídia e Deficiência - Assembléia Legislativa do Estado do RS.
Porto Alegre, 27 de julho de 2011.
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